domingo, 20 de dezembro de 2015

Capítulo 5 - O PADRE

Na virada do Milênio o Senador Luiz Estevão perde o mandato por envolvimento no caso do desvio de verbas do TRT-SP e passa uma noite na cadeia; O Banespa, instrumento de tantas falcatruas, é privatizado; O Projeto Genoma conclui o mapeamento do DNA humano; O seqüestro do ônibus 174 termina em tragédia; Jader Barbalho e ACM se acusam de corruptos; O Juiz Lalau é preso por desvio de verbas na obra do Fórum Trabalhista de São Paulo; A música Anna Julia dos Los Hermanos cansa de tanto que toca; A Igreja Católica contesta que as filmagens divulgadas sejam de um Padre pedófilo.

O sujeito de nariz aquilino e feições severas ergueu os braços e disse com autoridade:
- Não meus filhos! Nosso senhor Jesus Cristo disse: crescei-vos e multiplicai-vos. Então não pode sequer haver dúvidas na mente de um cristão temente a Deus. Usar preservativos significa sexo sem fins de procriação. Significa apenas luxuria! Não dêem ouvidos aqueles que querem apenas a sua perdição. Resistam! Não temam meus filhos. A AIDS é, na verdade, uma punição do demônio para aqueles que se voltaram contra Deus. Para aqueles que deixaram o pecado entrar em suas vidas. Sejam retos no caminho cristão e nada lhes sucederá.
As palavras do Padre Melchior ecoaram pela singela e abarrotada capela do bairro de Inhagoia, na cidade de Maputo, Moçambique. Por mais de cinco anos o Padre Melchior cuidou de seu rebanho com determinação e rigidez, mas agora tinha que ir embora. Com dor no coração proferiu seu último sermão para seu rebanho, quase que em sua totalidade composto por crédulos e desesperados, que confiavam piamente no Padre Melchior, em sua divina ira e garantia de que com ele seriam agraciados de alguma forma em algum momento de suas miseráveis vidas já que, por serem justamente miseráveis é que Deus os tinha em alta conta. Uma contradição que não lhes era dar terem ciência. Melchior tinha como certeza divina de que seria melhor que seus corpos ruíssem a permitir que suas almas se perdessem por toda a eternidade. Alguns poucos, os poderosos da vila e da capital no entanto, ousavam discordar de sua opinião.
Fariseus. Todos eles! Lamentou o Padre, ressentido pelo exílio que lhe impunham do seu rebanho, em especial, de seus anjinhos, como se referia aos garotos da congregação.
Na ultima semana o Padre Melchior fora severamente admoestado pelo Bispo. A imprensa local acusava-o de contribuir para o aumento da AIDS.
Ridículo, pensou ele, como se eu fosse responsável pela luxuria daqueles que se infectaram. Eles que se entendessem com o Senhor, como ele próprio estava se entendendo...
Mas como? Se ao longo de todos esses anos ele próprio esteve livre desse castigo é tão somente porque, aos olhos do Senhor, ele não era culpado, afinal. Mas agora, para piorar, não Deus, mas os homens, ou melhor, essa imprensa demoníaca, o estava acusando de pederasta e, para piorar, sua própria igreja o queria fora dali o mais rápido possível. Resignado com sua conduta e seguro de sua salvação.
Hipócritas. Voltam a fazer o mesmo que já fizeram comigo anos atrás. Refletia o Padre Melchior, genuinamente convicto de sua condição de vitima. Não vai dar em nada! Nunca deu. Afinal só tenho que prestar contas a Deus e não aos homens. Até agora meu corpo se mantém puro em meio a essa imundície que esta aí para punir aqueles que merecem. Não eu! Não fui punido em todos esses anos. Prova de que Deus tem me perdoado. Prova de que faço mais bem do que mal... Não há de ser nada. Recomeço em outro lugar. Nada vai mudar.

O sujeito flamboyant que se equilibrava com visível esforço no tamborete do balcão ao mesmo tempo em que segurava um elaborado coquetel quase tão espalhafatoso quanto a estampa de sua camiseta regata não chegava a destoar de muitos dos frequentadores da boate My Boy em Palmas, Tocantins.
- Olá. Posso lhe pagar uma bebida? - Ofereceu a um sujeito calado que sorvia lentamente uma vodka ao seu lado.
- Já estou bebendo – Retrucou o estranho, secamente.
- Já percebi... Percebi que você não tirava os olhos de mim, também.
- Ahã...
- É só pra chamar sua atenção, seu bobo. Vem sempre aqui?
- Não. É a primeira vez. – Mas diante da postura ansiosa do outro, comandou - Se acalma. Você está muito agitada.
- Puxa, mas como você é mandão. Adoro isso. Eu me chamo Rodolfo, mas pode me chamar de Rô. E você?
- Pode me chamar de Zé.
- Zé? Sei... Puxa, tá quente aqui, Zé. – Rô se abanou de forma afetada. – De onde você é?
- Por aí...
- Sei.
- Sabe o que? Desembucha.
- Calma. Só que você age como se estivesse dentro do armário. Liberte-se querido. Aqui é o lugar certo para isso.
- Isso não é da sua conta, bicha atrevida!
- Nossa. Como você é grosso. Se não quer minha companhia tudo bem. É só falar. Não precisa magoar. – Reclamou Rô ameaçando se afastar e provocando uma postura mais conciliadora por parte do estranho que, pela primeira vez, esboçou uma ameaça de sorriso.
- Desculpe. É que não estou acostumado. Talvez você tenha razão.
- Tá. Eu te perdoo. Também já passei por isso e sei que não é fácil. Mas a gente tem que se aceitar senão quem é que vai nos aceitar, não é mesmo?
- Já entendi o recado. – Respondeu Zé, secamente.
- Que tal se nós saíssemos um pouco pra nos conhecermos melhor? - Sugeriu Rô, insinuante.
- Daqui a pouco. Por enquanto seja uma boa menina e vá me buscar mais uma dessas.
- Que mandão. Adorei. Volto já e não sai daí.
Quando retornava o estranho bateu uma foto ao que Rô reclamou enfaticamente.  
- Fica fria. Entenda isso como um elogio – Zé deu de ombros de forma condescendente,
Apaziguado Rô tentou selar a paz com um beijo.
- Calma menina. Me deixa terminar essa bebida que a gente resolve lá fora.
- Enrustido! Vamos resolver esse seu problema rapidinho - Retrucou Rô todo faceiro.
 A saída deles não causou comoção alguma no ambiente que continuou tão animado quanto antes. Após alguns quilômetros estacionaram bem afastado da estrada nas imediações de uma curva de rio. Assim que desceram do carro, sem poder se conter, Rô tentou se aconchegar em um ardente abraço ao  que foi afastado sem rodeios. Mais que a brusquidão do gesto o que dissipou a nuvem etílica do alegre acompanhante foi a frase pausada emitida pelo estranho.
- Por favor, Padre Melchior, se contenha. Pelo amor de Deus.
O sorriso se apagou da face de Rô, repentinamente substituído por um misto de espanto e medo.
- Quem é você? – Retrucou Melchior com uma voz que agora já não tinha nada do falsete da anterior.
- Digamos que eu seja a ira divina. – Disse Max com um sorriso frio agora portando uma filmadora nas mãos.
- Você esta devendo penitência Padre..., ou pensou que não seria preciso?
- O que quer comigo?
- Nesse momento, que você dê um completo depoimento de sua trajetória para as câmeras. Afinal, precisamos registrar para a posteridade sua vida edificante. – Disse Max enquanto montava a filmadora em um tripé.
- Você ficou maluco? Nunca eu vou fazer isso. Nunca!
Em vez de replicar, Max retirou uma pequena frasqueira da mochila e dela uma ampola contendo um líquido vermelho com o qual encheu uma seringa sob o olhar intrigado e cada vez mais assustado de um senhor, curiosamente trajado com uma indumentária que agora já não combinava com seu recém adquirido porte e postura.
- Pelo amor de Deus, o que é isso? O que é que você está querendo fazer? - Suplicou o Padre Melchior – O que é isso? Afasta isso pra lá. Não me faça mal.
- Cale a boca e preste atenção. Esta seringa está cheia de sangue contaminado com o vírus da AIDS, ou SIDA como chamam lá na sua última paróquia.
Estarrecido o Padre nada falou. Provavelmente não acreditando que aquilo estivesse ocorrendo ou então, que talvez tivesse bebido demais ou que tudo não passasse de um pesadelo do qual estava prestes a despertar.
- Vou enterrar essa seringa em seu corpinho asqueroso – Exigiu o estranho gesticulando com a seringa.
- Por favor, não. Não faça isso. Pelo amor de Deus. Faço o que você quiser, mas não me infecte. Pelo amor de Deus.
- Se recomponha homem! Estou interessado no Padre Melchior e não na Rô. – Gracejou Max ostentando a seringa como se ela fosse um punhal.
- Pelo amor do Nosso Senhor Jesus Cristo afaste isso de mim, seu demônio maldito. Não faça isso.
- Mas como não? Afinal você não demonstrou nenhum amor cristão ao permitir que seus fieis, homens, mulheres e crianças, se infectassem em nome de seu moralismo falso, não e mesmo? – respondeu Max sarcasticamente – Vamos fazer o seguinte. Se você contar em detalhes a sua estória eu te poupo. O que você acha?
- Ah, isso não. Eles são mártires, anjinhos que já estão no céu. – Balbuciou o Padre Melchior de forma desconexa. - Eu estava salvando a alma de meus fieis que é mais importante do que suas vidas, do que seus corpos aqui na...
- Já que é assim eu vou, então, destruir seu corpo também. – Interrompeu Max. - Quem sabe assim eu te resgato como mártir da luxúria e você ganha o reino dos céus... O que você acha disso?
- Não, por favor.
- O pior é que no seu caso isso não vai te dirimir. Tenho certeza de que sua alma vai direto pro inferno, sem escala no purgatório. – Escarneceu Max. Para reafirmar sua intenção Max avançou com a seringa em riste.
- Não, não. Espera, por favor... Eu faço, eu faço, mas me diz o que você vai fazer com essa gravação?
- Isso você não vai saber. Você vai viver o seu resto da sua vida. Vou julgar se será pelo tempo que a AIDS permitir...
- Mas eu não quero isso. Não quero essa praga no meu corpo. Não
- Com medo. Será que eu vou revelar? – disse Max, bem lentamente, quase que num sussurro – Se vou fazer isso? Como eu vou fazer? Não importa. Você aniquilou a tantos. Vomita aqui pra câmera que você os impediu de usar camisinha, de se precaverem e que, por isso, eles se contaminaram. Que você os matou lenta e dolorosamente, mas que antes você manchou a inocência de seus filhos... Mas começa do inicio. Quando você ainda era apenas um seminarista. Lembra-se do orfanato? Tão humanitário... Vamos lá, fala!
O silêncio imperou e o medo do Padre foi momentaneamente substituído pela surpresa. Mas foi tirado do estupor pela dura realidade do dia do seu juízo final.
- Não tenho o dia todo. Vamos Padre. Dê seu depoimento para as câmeras, mas sem pregação. – Max ordenou lenta e friamente enquanto mantinha a seringa bem a vista.
Por cerca de uma hora o Padre Melchior desfiou sua hipócrita, seu fanatismo, sua pederastia. Assassino que foi ainda sem admiti-lo, contou em detalhes sua vida. A princípio titubeante e gradualmente de forma mais convicta. Sempre que o Padre resvalava para a pregação Max, fora do alcance da câmera, pressionava a agulha contra eu corpo. Acovardado, o Padre Melchior retornava a sua hedionda narrativa. Quando encerrou sua fala, Max se deu por satisfeito. Sem nada comentar, desligou a câmera sob o olhar apagado do Padre e ergueu a seringa em sua direção.
- Não! Você prometeu... - Suplicou o Padre.
- Eu menti – retrucou Max friamente.
Max avançou e o agarrou pelo pescoço cravando-lhe a agulha no pescoço. O Padre se debateu inutilmente enquanto o conteúdo da seringa desaparecia lentamente em suas entranhas.
- Fique tranquilo Padre. Você provavelmente terá um tratamento melhor do que os muitos que desgraçou. Talvez até viva bastante. Espero que não!
Max recolheu seu equipamento e se afastou em direção ao carro, deixando o Padre conjecturando se enfim tinha recebido sua punição. Se ela era merecida. Um castigo maior do que a divina. Aquela da qual já se acreditava perdoado.

Alguns dias mais tarde Max enviou as gravações junto com uma elegia para vários jornais e revistas semanais, além da própria internet e sem nenhuma informação adicional que indicasse quem era a vítima.
 
“A fé é exigida para o abuso se consumar.
Na crença de se acreditar sempre correto.
Combustível da hipocrisia!
Os pobres de espírito, as ingênuas ovelhas...
Seu pastor é seu predador!
Mas eles não escutam.
E assim, seu pecado justifica a praga?
Seu pastor é seu predador.
Os pobre inocentes, um após o outro.
Pois eles retornam,
Como anjos vingadores.
O interlocutor divino pagou a penitência,
Pela mão esquerda de Deus.
O sofrimento é a redenção.
Como ele mesmo insistia:
Salve a alma e morra o corpo!
                                                            
Por não serem sensacionalistas ou por não estarem interessados em se indispor com a Igreja a maioria dos meios de comunicação inicialmente não divulgou a gravação ou o poema. Mais tarde cópias começaram a aparecer na internet e foram associados ao caso dos pedófilos de meses antes. Ao que tudo indicava o Poeta estava de volta. A celeuma que se seguiu permitiu que uma das revistas semanais de maior circulação no país recebesse uma carta de um de seus leitores afirmando que conhecia a pessoa da fotografia. A reportagem investigativa que se seguiu revelou que o Padre Melchior Macedo da paróquia de Paranã em Tocantins tinha sido alvo do Poeta. Mais curioso ainda, o Padre havia falecido a apenas poucos dias de enfisema pulmonar como confirmava o atestado de óbito do hospital regional e a polícia civil local. Naturalmente a Igreja inicialmente evitou qualquer comentário para mais tarde negar veementemente que o Padre fosse realmente um pedófilo e que tudo não passava de um psicopata que havia escolhido e torturado um pobre homem de Deus.

- Com tantos contras chega a ser irônico apreciar sutilezas como uma boa música – Comentou Max – Pelo menos para gente como nós.
Para os apreciadores de Jazz, Blues e Bossa Nova o Allegro Bistro era o endereço certo no Rio. Em uma mesa distante do palco Max apreciava o show na companhia de um aficionado como qualquer outro.
- Vai fazer cinquenta anos que Miles Davis compôs e arranjou Kind of Blue, a música mais emblemática do jazz. Não há argumento contrário – Discursou professoralmente seu parceiro de mesa. - De qualquer forma hoje é noite para celebrar. Dois desses “contras” foram eliminados. 
            O sujeito a que Max se referia como Capitão insistiu em continuar na mesma linha de raciocínio, alheio à música que se desenvolvia no pequeno palco.
            - Claro que merecemos uma pequena celebração, mas ainda há muitas pendências e sem querer estragar o clima ainda há a Dona Matilda e o filho. Precisamos discutir isso Tenente.
            - Claro que precisamos. – Retrucou Max, virando as costas ao show e encarando seu companheiro de mesa. - O que você tem em mente?
- Você está vendo aquele sujeito ali na 1ª fila? Aquele alto, careca, que estava discutindo com o garçom quando entramos? – Disse o Capitão entregando-lhe um envelope de papel pardo. – Pois bem. Ele é o seu próximo caso, mas não agora. Espere alguns meses. Eu lhe aviso quando. Por ora vamos estudar seus hábitos.
- É... para gente como nós não há oportunidade para escapar ao nosso oficio. – Retrucou Max já não mais atento à performance que se desenvolvia no palco.

sábado, 14 de novembro de 2015

Capitulo 4 - O CASARÃO DA ALDEOTA - Parte 3

Graças a um grampo no telefone do sobrado da Aldeota e a uma escuta colocada no interior da sala foi possível conhecer detalhes tanto do processo de aliciamento quanto da maneira como os abusos eram cometidos. Max concluiu que tal como ele o aliciador era um sujeito disciplinado. De qualquer forma – deu de ombros - a padronização de atos daí decorrentes podia ser um risco também e uma vantagem para si próprio.
Atuando impunemente e não provocando nenhum interesse das autoridades competentes, Hulk e seu patrão atuavam com requintes de desenvoltura e perversidade.. Mais do que o abuso sexual convencional, garantiram para si um lucrativo negócio ao associar pedofilia com sadismo. Para eles, Max tinha uma surpresa especial.
O austero casarão, palco das ocorrências que eram transmitidas via web, fora herança de um tio zeloso de Hulk. Para lá eram atraídas ou levadas à força meninos e meninas, na maioria aquelas que já se sujeitavam ao sexo vendido nas esquinas ou, como mais apreciavam, as mais tenras, as que ainda não conheciam a luxuria e que apenas tentavam sobreviver lavando pára-brisas ou fazendo canhestros malabarismos nos semáforos das cercanias.
As escutas telefônicas realizadas ao longo de vários dias esclareceram boa parte da rede de conexões. Sons terríveis se fizeram ouvir ocasionalmente, embora, pelo que foi possível perceber, vinham esporadicamente de um dos quartos. A ação não se passava na sala, sendo esta apenas um ponto de passagem. Com as escutas foi possível saber que o primeiro quartos era privativo de Hulk e Paquito, respectivamente.
Almas gêmeas – debochou Max enquanto sorvia calmamente uma xícara de chá.
Já o segundo cômodo era um misto de estúdio cinematográfico e matadouro. O terceiro recinto era composto por celas individuais e coletivas. Embora, pelo que foi possível constatar, encontrava-se sem nenhum ocupante. No entanto, no dia que antecedeu a intervenção de Max as escutas o deixaram saber que havia alguém que havia sido aprisionado naquele mesmo dia. As macabras atividades da dupla podiam ocorrer a qualquer momento, mas nesta noite, em meio a gargalhadas a dupla havia combinado que dormiriam cedo de tal forma estar bem dispostos para a manhã seguinte.
Essa seria a noite dos predadores encontrarem seu predador. Saboreou Max.

Às três da madrugada, um velho Monza de um prata já bem desbotado, estacionou na rua lateral ao sobrado. Ainda no carro Max checou seus apetrechos. Seringa, revolver com silenciador, soco inglês, navalha, bisturi, algemas, além de máscara e luvas cirúrgicas.
A casa deteriorada, esquecida naquela rua suburbana se apresentava ameaçadora em sua imobilidade. A umidade e as sombras que projetava empoavam o ar em um silêncio de pedra.
Catarse insidiosa. Frio, mofo, pestilência e nenhuma alma a vista. Todos adormecidos na mansão dos horrores. Pé ante pé fui me aproximando... Parei, segurei a respiração e ouvi atentamente. Continuei. Um passo atrás do outro.
Lá dentro os incautos. A cidade dorme. A mente e a consciência descansam por algumas horas. Sem pressão. A morte por algum tempo. Nada é nada. Nunca existimos e não há nada a provar, nenhuma satisfação a atender a não ser dormir e esquecer. Adormecer é prenunciar a morte.
Retirei o pé de cabra e gentilmente, mas com firmeza forcei a janela que se abriu com um débil protesto. Parei. Segurei a respiração e prestei atenção por segundos e minutos. Nada a escutar, nem dentro e nem fora. Continuei. Saltei a janela da já conhecida sala.  Agucei ainda mais meus sentidos e percebi sombras imutáveis, o som previsível e o cheiro nauseante. Tudo como dantes. Encostei a janela e retirei meus sapatos e na escuridão cada vez mais cinza me aprumei e abarquei toda a extensão da sala. Meu rosto se alterou e a ânsia voraz crescendo e tomando conta de mim. Hoje termina. Não mais...
Uma sombra escorre pelas paredes, abre a porta, adentra o recinto, se aproxima da cama e paira observando longamente, antecipando a vingança dos inocentes. Com a mão esquerda apontando o revólver na cabeça de Paquito, com a direita Max aplicou a injeção no pescoço do comparsa. Só teve tempo de se desviar por uma fração de milímetros da mão pesada que voou a esmo em sua direção fazendo com que sua arma escapasse e caísse no chão ao lado da cama com estrondo. A luz se acendeu e Max viu o gigante erguendo-se cambaleante em sua direção ao mesmo tempo em que tentando se esquivar saltava a procura da arma. Max se desviou da massa de carne que o perseguia e lhe deu um chute na virilha. Hulk caiu gemendo enquanto Paquito conseguia apanhar a arma, mas antes de apontá-la algo o atingiu no rosto com tal força que o distraiu o suficiente para que a arma lhe fosse retirada pelo invasor.
Max se afastou e observou ambos estendidos no chão. Em menos de um minuto a injeção fez o efeito esperado e Hulk parou de gemer e de se estrebuchar. Max guardou consigo a arma e se aproximou do pequeno Paquito.
- Quem é você? O que quer? – gemeu Paquito, encolhido, encobrindo o rosto com o braço, com se temesse levar um soco.
 Max nada falou, simplesmente o agarrou pelo colarinho e o arrastou até o estúdio de filmagem, cujo recinto, completamente a prova de som, mais parecia uma câmara de tortura. Diligentemente o algemou em uma maca, amarrando tronco e pés, além de amordaçá-lo. Em seguida retornou ao quarto e fez o mesmo com o desacordado Hulk. No estúdio Max resolveu algemá-lo e por meio de correntes pendurá-lo em um gancho no teto já disponível para esse fim. Com ambos já imobilizados a atenção de Max voltou-se novamente para sua valise de onde retirou nova seringa, abastecendo-a com um líquido de coloração diferente da anterior. Se aproximou de homem pendurado e lhe aplicou a a solução de acolamita direto na garganta. Alguns minutos depois Hulk estava desperto esbravejando e se contorcendo.. Em todo o processo Max esteve sentado calmamente, sem nada falar, apenas assistindo e se regozijando com acena que se apresentava a sua frente. Com um misto de repulsa e admiração Max falou para a pequena platéia que ainda se encontrava incapaz de expressar seu terror de forma audível.
- Impressionante o aparato que vocês têm aqui. Bem mais sofisticado e completo que o meu. Ainda bem que eu não trouxe a minha tralha. Vou tentar ser criativo e imaginar pra que serve isso ou aquilo – apontou casualmente alguns apetrechos cirúrgicos sobre uma bancada de aço inox. - Se eu tiver alguma dúvida vocês me ajudam? – gracejou enquanto tocava um fórceps.
Mas não se preocupem, já assisti há alguns de seus trabalhos e estou ansioso por testá-los. – E cinicamente emendou. - Vocês vão me ajudar mais do que com palavras. Vocês vão me emprestar seus corpos...
Para satisfação de Max a reação da dupla foi de pasmo e horror. Balançando e gemendo ambos balbuciavam em pavor.  
- Antes de começarmos vou me ausentar um instante só pra checar se a criança que vocês raptaram hoje está bem. Vou trabalhar em vocês de forma rápida ou lenta dependendo do estado dela...
Max saiu para a sala e lá abriu a porta da esquerda. Um cheiro forte de desinfetante atingiu suas narinas. No cômodo de paredes nuas havia quatro compartimentos cercados por tela pelos lados e acima como se fossem viveiros de aves. Em cada um deles havia uma pequena cama de armar que mais se assemelhava a um catre. Em um deles um pequeno corpo jazia inerte. Max observou um garotinho de não mais que dez anos, encolhido, completamente adormecido. Checou sua respiração e batimentos cardíacos. Observou que parecia estar em ordem e o cobriu com uma surrada manta..
- Vocês doparam a criança e foram dormir pacificamente... Afinal, vocês planejavam ter um dia cheio amanhã, não é mesmo?... Indagou Max displicentemente, como se nenhuma resposta fizesse diferença alguma. Mesmo assim emendou, falando lentamente apesar dos grunhidos e gemidos de suas vítimas
- Temos bastante tempo..., mas antes, que indelicadeza a minha, perdoem-me. Vou reconsiderar e já que esse estúdio é a prova de som gostaria de m dessem um depoimento. Que tal? – completou cinicamente, arrancando de cada um a fita que os emudecia.
Uma torrente de gritos e impropérios irrompeu no ambiente. Alguns segundos mais tarde foram substituídos por súplicas e lamentações. Max assistia a tudo impassível até que Hulk pareceu se dar conta de que seu algoz não lhe era totalmente desconhecido.
- Mas..., já te conheço. Você não é o funcionário da telefônica? Por que está fazendo isso? - Rugiu sob a olhar de espanto de Paquito, que passou ofensivamente a exigir explicações de seu parceiro.
- Calma pessoal. Vamos ser civilizados. – Max interrompeu para em seguida fazer uma pausa estudada -  Quanto a quem sou eu? Eu sou bem mais que um funcionário da companhia telefônica. Isso vocês já perceberam...
Entre tremores, gemidos e impropérios da dupla imobilizada, Max, com um leve sorriso nos lábios contrastando com o brilho frio de seu olhar, falou pausadamente:
- Eu sou a fúria das crianças que vocês abusaram e mutilaram... E não é de hoje.  Não é mesmo Quinzinho?
Hulk olhou espantado para seu algoz. A curiosidade suplantando o terror.
- Eu não sei quem é esse tal de Quinzinho. – Recitou, desconcertado.
- Nós o chamávamos de Godzilla lá no orfanato. Sabia disso? Você sempre teve vocação para capacho. Sempre com seu mestre. – Disse Max melífluo, olhando ao redor com atenção. - Me parece que ao longo de anos você tem evoluído no seu oficio. Agora é ator... Quanto tempo faz isso? Dezoito? Vinte anos? Não importa.
Quinzinho nada comentou. Limitando-se a observar atentamente seu algoz, talvez na esperança de que alguma lembrança surgisse.
- A propósito. Bacana essa tatuagem que você mandou fazer. Deve assustar ainda mais as crianças e dá um toque surrealista ao vídeo. – Escarneceu Max.
Finalmente Hulk resolveu reagir, vociferando enquanto tentava arrebentar as correntes.
- Então é vingança. Já saquei. Você só pode ter sido um dos viadinhos do orfanato. – Vociferou Hulk.
Max não se importou e continuou com sua preleção.
- Eu assisti a alguns dos seus trabalhos e, sinceramente, achei a interpretação meio fraca. Daqui a pouquinho você vai fazer seu trabalho definitivo, com muita autenticidade, tenho certeza. Digno de um Oscar. Pena que vai ser o último.
Paquito e Hulk intensificaram os gritos e gemidos, as súplicas e as ameaças.
- Por favor, não me mate. Sou aidético e não devo durar muito mesmo. Por favor... - Suplicou Paquito desesperado.
- Que patético. Você acredita que isso possa me dissuadir? Mas você me deu uma idéia. – Respondeu Max com uma gargalhada.
Sem se abalar com o berreiro ensurdecedor, Max vestiu calmamente um avental, máscara e luvas cirúrgicas e sob o olhar aterrorizado da dupla selecionou, lentamente, os apetrechos à disposição na bancada próxima. Por fim tomou uma seringa vazia de sua própria valise.
- O que eu posso fazer é tomar emprestado um pouco do seu sangue.. Certamente terei alguma utilidade pra ele. – Enquanto falava se dirigiu até o estarrecido Paquito. Segurou-lhe a cabeça firmemente e enterrou a seringa em seu pescoço enquanto o sujeito se debatia inutilmente. Repetiu o processo algumas vezes até encher três ampolas.
- Nunca se sabe, não é mesmo...? Comentou Max como se alheio a balbúrdia do ambiente. Colocou as ampolas na geladeira e só então deu atenção ao sujeito pendurado que urrava, desatinado.
- Calma, Quinzinho. Não fique impaciente. Já vou cuidar de você.
Max foi até a bancada e apanhou uma torquês. Segurou a jugular do grandalhão e com a tenaz arrancou parte da orelha esquerda de Hulk. Enquanto o homem gritava alucinado de dor, Max calmamente se dirigiu ao que estava na maca.
- Por favor, não faça isso comigo. Eu não suporto dor. Por favor. O que você quer? É só pedir.
 Max parou com a ferramenta a milímetros do nariz de Paquito.
- Bom, se é assim... Eu quero as informações da sua rede. Assenta do seu computador, os e-mails com os quais você passa esse material, endereços, nomes, tudo. Dependendo do que você me der, posso pensar em matá-lo rapidamente..
- O que você quer com isso. Você é policial?
- Isso não te interessa, mas respondendo a outra pergunta. Eu não sou policial. Só um vingador, como seu namoradinho aí do lado pode confirmar.
- Vingança do que? Mas eu? Nunca te fiz nada. Nunca. Seu problema é com o Hulk, não comigo.
- Mesmo assim. – com uma expresso mal contida de ódio e desprezo Max retornou ao homem pendurado enquanto ouvia S ameaças agora dirigidas não a sua pessoa, mas ao homenzinho que se debatia sobre o balcão. Como Hulk se debatesse demais Max bateu com a torquês em sua costela. Um som de algo se quebrando se fez ouvir, logo seguido por um urro ensurdecedor.
- E então? – Provocou Max retornando a Paquito.
- Por Deus. Você é um monstro.
- Sou mesmo. Aliás, somos. Última chance. – Max encostou o frio metal na narina de Paquito.
- Não. Por favor, não. Se eu te der o que você quer, você me solta? Me deixa livre? – Suplicava Paquito, chorando e gemendo.
- Não! Só uma morte rápida ou podemos passar aqui por dias se for preciso. Mas vai depender do que você me der. – vociferava Max enquanto a tenaz arrancava um pedaço da narina do pedófilo.
- Nós já estamos mortos mesmo. Dê o que esse filho da puta quer. – Praguejava Hulk.
Com a boca empapada de sangue Paquito apontou quadro ao lado da única porta do ambiente.
- Alí naquela parede, atrás daquele quadro tem o que você quer, inclusive as senhas, e-mails, IPs, tudo. – balbuciou lentamente.
Max retirou da parede uma reprodução barata do quadro As Tentações de Santo Antão de Hieronymus Bosch revelando um cofre. Assim que Paquito lhe ditou o código Max o abriu e passou alguns minutos checando o material, que era bem maior do que imaginava. Além de aliciador e diretor dos macabros vídeos, Paquito também era o administrador de uma extensa rede de pedófilos sádicos.
Com aquelas informações a rede seria totalmente desbaratada, concluiu Max com satisfação.
Voltou a guardar o material no cofre, mas sem recolocar o quadro. O próximo passo seria disponibilizar esse material através do Net Nanny, programa especialmente desenvolvido para combater a pornografia infantil.
Apesar do imprevisto ocorrido quando de sua chegada, a situação já estava normalizada e tudo correndo conforme planejado.
- E agora preciso ir. Vocês já não têm nada que eu queira. A não ser morrer. É claro!
- Vai seu filho da puta! Vai rápido..
- Eu menti. – Retrucou Max, singelamente. – Eu poderia passar as próximas horas revezando de um para outro, reproduzindo em detalhes a tortura que assisti nos sites e no material que acabei de verificar. Cortar, picar e perfurar, queimar e eletrocutar... E quando um desmaiasse, eu passaria de um para o outro... Vocês já não representam perigo. São presas inúteis.
- Então você vai nos deixar viver? Nos libertar? Nos entregar à polícia? O que você vai fazer? – Suplicou Paquito, na expectativa de haveria ainda algo a que se agarrar.
- Você é uma bicha idiota mesmo, Paquito. – vociferou Hulk. – É claro que esse puto não vai nos deixar viver.
- quanto eu disse que menti eu me referia a você Quinzinho. Quanto a ficar aqui torturando-o por dias e dias e quanto a você, Paquito, eu também menti. Sou um mentiroso contumaz – Gracejou enquanto apontava um bisturi em sua direção – vai demorar muito pra morrerem, estejam certos. E vai ser bem dolorosa - Afirmou em meio à onda de gritos e palavrões que se seguiu.
Sem mais nada dizer Max desferiu um um golpe rápido na barrica de na de outro. A barrigada de Hulk se despencou no chão ficando parcialmente pendurada. A de Paquito, com tripas e intestino espalhados pela bancada. Gritos desconexos, engasgados sendo substituídos gradualmente por gemidos.
Almas duras... Como é gratificante destruir o poder que pensam possuir. Contemplou Max sem nada mencionar.
O canto do galo lhe avisou que era hora de partir. Tal como Nosferatu sabia que deveria evitar o alvorecer ainda na casa. Deixou-os ainda com vida, contemplando lentamente, nos olhos um do outro, a morte que dolorosamente se avizinhava.
Cerimoniosamente limpou suas ferramentas e as guardou. Retirou então seu uniforme, luvas e máscara e os colocou em um saco plástico e saiu do quarto. Retirou todo o conteúdo do cofre. Desconectou o computador e se dirigiu com sua carga em direção à saída. Espreitou a vizinhança e abriu a porta principal. Já no carro respirou fundo o ar matinal e deu partida. Logo daria um telefonema anônimo à polícia e à uma rede de televisão para garantir que a criança fosse resgatada o mais rápido possível.
- O ar está mais puro, a luz mais limpa, suspirou enquanto seu carro se afastava serenamente do sobrado dos horrores. Atrás de si apenas um folha de papel junto aos corpos.



“O desconhecido se oculta no aparente 

E o que é tido como obvio não passa de dissimulação.

Inocência abusada.

Quem irá defendê-la?
Esse imenso crime,
Dos torturadores àqueles que na calada da noite,
No aconchego de seus lares se locupletam,
Na dor daqueles que por serem tão frágeis,
Não têm serventia além de serem usados e descartados.
Quem irá reconhecê-los?
São muitos!
Então, egoisticamente,
Só me resta ceifar alguns.”

Àquela hora da manhã as salas do MASP ainda estavam pouco freqüentadas. De fato, havia apenas dois homens apreciando a obra Tentações de Santo Antão de Hieronymus Bosch.
- Irônico, Tenente. Santo Antão representa um símbolo de renúncia à vida mundana e ao pecado.
- A reprodução estava lá como um lembrete cínico na parede dos pedófilos. Um deboche. – Suspirou Max. – E as repercussões, Capitão?
- Seus telefonemas provocaram uma revolução. Colocou a polícia na cena do crime e a mídia também.
- Como se já não houvesse crimes suficientes para ocupar a atenção da mídia. – Interrompeu Max, acidamente.
- Mas parte do frenesi se deve ao telefonema ter partido de quem praticou as mortes... – Observou aquele que se apresentava com a alcunha de Capitão.
- Por que o mau humor? Não aprova a minha iniciativa?
- Você compreende, não sei se é seguro divulgar dessa maneira e nem se esse sensacionalismo é prudente. Essa coisa de enviar material para ser divulgado... Esse jogo de usar a mídia como se ela fosse um arquivo as avessas... Vamos ter que analisar as repercussões. O garoto se encontra bem e já com a família, conforme foi noticiado. No mais tudo correu como planejado. Nesse momento a rede de pedófilos está sendo desbaratada com cópias do material apreendido sendo enviadas para a Interpol.
- Houve imprevistos. – Desculpou-se Max.
- Nem sempre dá para garantir que o plano vá funcionar totalmente. Desconsidere o que falei. - Contemporizou o Capitão - Afinal isso não é ciência, é arte. E você é um artista. Aliás, um dos tablóides comentou que as mortes foram cometidas por um justiceiro poeta. – Gracejou. – Eu sabia que seus dotes literários ainda teriam alguma aplicação prática.
- E agora?
- Agora vem o próximo da lista. É um velho conhecido que acabou de chegar da África.

domingo, 8 de novembro de 2015

Capítulo 4 - O CASARÃO DA ALDEOTA - Parte 2

Naquele tarde abafada, caminhar pela rua arborizada era um alívio. O funcionário da companhia telefônica se dirigiu ao número 14, um belo casarão no Bairro da Aldeota que já viu dias melhores em seu apogeu há mais de um século atrás.
As grades são baixas e o portão é elétrico. Observou o funcionário.
Não encontrando nenhuma campainha chamou o morador em altos brados. Um sujeito corpulento e de maus bofes, com pouco cabelo e cavanhaque, respondeu atrás das grades de um enferrujado, mas belo portão de ferro fundido.
Você não é tão alto assim, Hulk. Pensou Max enquanto se aproximava do gradil.
- Qual o problema? - Perguntou o tipo, com a cara amarrada, sem abrir o portão.
- Bom dia senhor. Sou da companhia telefônica e vários telefones dessa região têm apresentado problemas. Preciso verificar sua linha se não se importa – Max respondeu de forma automática, como se já tivesse acostumado a repeti-la à exaustão.
- Volte outra hora. Não sei de nada e o patrão não tá em casa.
O funcionário deu de ombros.
- Olha, só vou checar a fiação e isso é rápido, mas o senhor é quem sabe. Quando seu telefone tiver problemas o senhor nos contata e vamos agendar uma visita. De qualquer maneira obrigado e até mais...
- Péra aí, – reconsiderou o caseiro - quero ver seu crachá.
Com ar suspeitoso examinou o documento e o devolveu.
- Ok, Seu Mateus de Paula. Vem comigo.
Max foi escoltado ao redor da propriedade. Durante o percurso foi possível verificar que a construção principal contava com janelas duplas. Apenas uma delas se encontrava parcialmente aberta, mas era o suficiente para notar que não tinha grades, que era do tipo guilhotina na parte interna e que as venezianas, já carcomidas pelo tempo, se abriam para fora. Uma simples Cremona, sem fechadura, era a única coisa que a mantinha fechada. As portas eram maciças com uma única fechadura convencional. Tanto quanto Max pôde notar não havia nenhum sistema de alarme e nenhuma cerca elétrica nos muros, nem cães de guarda à vista e nenhum canil.
- Com toda essa violência que tem por aí vocês deveriam ter alguns cães. Eu tenho um cunhado que... - a consideração do pseudo-funcionário foi interrompida rispidamente.
- Fica na sua e termina logo essa merda. Tô aqui o tempo todo. Se alguém pensar em entrar, passo fogo e pergunto depois.
 Passa fogo, é? - Considerou Max com desdém - Impressionante como numa cidade como esta, em uma casa como esta tão devassada, a segurança seja assim negligenciada. Pensam que são inatingíveis. Pois sim...
- Me desculpa. Isso não é da minha conta - Max simulou receio ao mesmo tempo em que anotava em sua mente o fato da propriedade ser composta por um único bloco, além de uma garagem para dois carros e se o caseiro-ator moraria sozinho na casa...
Enquanto puxava o fio do barramento da linha telefônica e encerrava o reparo externo sob o olhar atento do caseiro Max comentou com um misto de enfado e cansaço que aqui fora tudo parecia estar em ordem. 
- Nada partido nem oxidado. Ótimo. Pronto, terminei aqui fora. Agora só preciso checar as conexões internas.
- Por aqui! - comandou o caseiro, acompanhando-o para dentro da casa.
A casa era mobiliada com móveis de época e uma ante-sala que desembocava em uma espécie de átrio interno. Pelo que pôde ser rapidamente observado a sala principal era circundada por quatro portas internas, todas fechadas com exceção da porta da cozinha que se encontrava entreaberta. O funcionário da telefônica observou que também não havia nenhum sistema de alarme no interior da casa.
- Quantas extensões vocês tem?
- Duas. Mas checa só a daqui da sala - ordenou Hulk e completou – a outra deixa pra lá.
- Mas eu preciso checar...
- Eu já falei que só a daqui, pôrra! – Bradou Hulk.
- Tá, desculpe. Você é quem manda. Você poderia me conseguir um copo d’água? O calor tá de matar.
- Vou pegar, mas fica aqui! – Ordenou o caseiro enquanto se afastava, suspeitoso.
Após alguns minutos o funcionário reconectou a linha e fechou o aparelho telefônico. Constatou que a linha estava em  operação e se despediu.
- Muito obrigado e me desculpe qualquer coisa. Eu bem sei que é complicado ter um patrão barra pesada, eu mesmo...
- Tá, tá, mas vai pegando seu caminho. Tenho mais o que fazer – interrompeu o sujeito conduzindo-o em direção ao portão de saída.
Com um baque se afastou sem que sua saudação de despedida fosse correspondida, Max refletiu aliviado que, apesar do risco, tudo saiu como planejado.
Parece que Paquito confia apenas nesse pau-pra-toda-obra para garantir a segurança da propriedade. Refletia Max enquanto se afastava calmamente em direção à Avenida Santos Dumont, insensível ao calor escaldante que se derramava por toda tarde.

Atento a movimentação da Praça Filgueiras de Melo Max sorvia seu expresso, sem pressa alguma, como se a manhã tivesse se interrompido para que aquele simples ato fosse um ritual de temperança em meio ao caos da metrópole. Lá fora, pessoas da terceira idade, donas de casa e babás às voltas com suas crianças em um pequeno parquinho. Sua atenção se concentrou no chafariz do outro lado da praça onde um sujeito franzino de idade indefinida, cabelos compridos amarrados em um rabo de cavalo e ar despreocupado, gentil e atento à vizinhança, mantinha seu cãozinho poodle firmemente seguro pela coleira.  
Duas garotinhas se aproximaram para brincar com o cãozinho, as afastou bruscamente atento que estava a um garotinho amuado, sentado no chão ao lado do carrossel em meio a uma algazarra de cores e risos.
O carrossel girava e Paquito se aproximava com o cãozinho nos braços, serpenteando sorridente em direção à sua pequena presa.
- Oi garotão. Por que está chorando?
- Não me deixaram brincar – soluçou o garotinho.
- Mas que pena – se condói o monstro em um sorriso sádico ao mesmo tempo em que  estende um pirulito, prontamente aceito – onde está sua mãe?
Quem lhe responde é uma jovem, provavelmente a babá, que chega em desabalada.
- Sai daqui agora! - ordenou a moça visivelmente transtornada enquanto tomava a criança nos braços.
 O garoto irrompeu em prantos e o estranho, ainda sorrindo, tentava se justificar.
- Me desculpe. Não queria incomodar é que vi a criança chorando e só quis...
- Olha moço, não te conheço, fica longe do meu garoto. Ato contínuo, começou a gritar por socorro.
Um policial que vinha caminhando pela extremidade oposta do parque, reagiu ao chamado.
O semblante do predador se transformou ao observar o guarda que corria em sua direção. Transtornado, bateu em retirada apressadamente, mas não sem antes atirar o cão na pequena multidão que começou a se formar.
- Alí, seu guarda. Gesticulava a babá, freneticamente - É aquele sujeito de camisa vermelha.
O policial se afastou em desabalada para retornar frustrado alguns minutos depois.
- Calma, calma... - O guarda tentava acalmá-la, nessa altura já rodeada por várias pessoas, na maioria moças como ela, trajadas por algum tipo de uniforme branco
- Me explica o que se passou.
- Eu não tinha notado nada de estranho. Na verdade eu estava conversando com minhas colegas e aí um sujeito apareceu do nada e nos avisou, apontando para a direção do Flavinho, que ele estava sendo sequestrado. Olha seu guarda, nem parei pra pensar, saí correndo e aí o senhor já sabe, né? – Concluiu a baba com acenos e impropérios de parte da multidão que os rodeava.
- Vamos ter que fazer um boletim de ocorrência e preciso do depoimento de vocês.
- Olha seu guarda, até posso descrever o sujeito que estava conversando com o Flavinho, mas o que me avisou, sei não...  Foi tudo muito rápido.

Há alguns minutos dali, um Opala marrom deslizava cautelosamente ao longo da Avenida Beira Mar. Seu ocupante refletia que, dessa vez, felizmente, as intenções do pedófilo foram frustradas. 
Causava espanto o interesse do sujeito em se arriscar dessa maneira, refletiu ele. Até porque, a poucas quadras daquela praça, nesta avenida, turistas andavam de braços dados com adolescentes sem nenhum pudor ou preocupação. Provavelmente - concluiu Max com o semblante cerrado - o interesse desse tipo é por vitimas  bem mais jovens. 
O plano dessa vez não funcionou, mas pelo menos, nenhuma criança foi levada. Foi por uma boa causa, ponderou resignadamente. 
Todavia, foi preciso improvisar e Max não gostava de improvisos.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Capítulo 4 - O CASARÃO DA ALDEOTA - Parte 1


No ano de 1999 o escândalo das viagens fantasmas dos deputados não acarretou nenhuma condenação ou devolução; O Banco Marka de Salvatore Cacciola compra dólares do Banco Central por valor mais barato que o oficial no que se estima provocou um rombo de 1,8 bilhões de reais; O Euro se torna moeda corrente em vários países europeus; O calouro da USP Edson Hsueh é encontrado morto no fundo de uma piscina após um trote; Hugo Chaves se torna El Presidente da Venezuela; O temor do bug do milênio é infundado; Dois pedófilos são assassinados em Fortaleza e as provas encontradas no local do crime desbaratam uma ampla rede de criminosos.
Um dos arquivos do CD enviado pelo Capitão trazia alguns endereços eletrônicos com as respectivas senhas de acesso. Outro arquivo trazia um conjunto de fotos digitalizadas de duas pessoas e lugares. Em uma das fotos postava-se empertigado um sujeito de cavanhaque, estatura baixa, franzino aparentando ter cerca de cinquenta anos. A outra foto era de um sujeito corpulento e carrancudo, mais ou menos da mesma idade.
Max observou as fotos com cirúrgico interesse e as colocou de lado voltando sua atenção para o arquivo de textos que explicava os detalhes da missão:
“Neste ano estima-se cerca de dois milhões de sites indecentes com projeção de chegar a vinte milhões em uma década. A internet abriu toda uma nova e ampla avenida para o comportamento de pornógrafos variados, entre eles os pedófilos. Nesses sites, em particular, as vitimas são reduzidas a pixels. A maior parte das crianças não está desaparecida. Elas têm escolas e vivem, aparentemente, vidas normais. A maior parte das fotos e de filmagens é enviada por pessoas nas quais as crianças confiam tais como pais, padrastos e parentes. Horror dos horrores, algumas são tão jovens que nem podem falar.
Consiga informações a partir de Paquito Buendía, um espanhol radicado no Brasil há vinte anos e seu comparsa Joaquim Valério dos Santos, que atende pelo apelido de Hulk.
Paquito é o cérebro da operação, arrebanhando as vítimas diretamente nas ruas de Fortaleza ou através de sites de relacionamento em salas de bate-papo. Elas são raptadas e levadas para um casarão no bairro da Aldeota onde são então seviciadas. Paquito se encarrega das filmagens e Hulk, além de ser seu guarda-costas pessoal e caseiro é o único adulto a atuar nas filmagens. Sua produção é distribuída através de uma rede de pornografia internacional com site domiciliado na República Tcheca. Ambos são especializados em pedofilia e sadismo, suas vítimas nunca mais são vistas depois que passam por suas mãos. Portanto, além de retirá-los de circulação é imperativo conseguir informações da rede que essa dupla alimenta. É de interesse conseguir o endereço de IP do servidor para onde as filmagens são enviadas e com isso capturar o administrador da rede. De lá será possível rastrear a rede da qual essa dupla faz parte. As agencias para os quais serão enviadas esse material se encarregarão dessa parte e, se necessário, de quebrar os códigos criptografados."
Além dessas orientações haviam fotos do local onde os abusos eram consumados e filmados. 
Com paciente e fria determinação Max vasculhou fotos e filmes onde as crianças eram seviciadas pelo segundo sujeito da foto, o qual possuía uma imensa e desbotada tatuagem de dragão no peito. O portfólio ainda incluía os dados sobre os hábitos de ambos, os locais que frequentavam, bem como o modus Operandi do processo de aliciamento e rapto.
Dizer que Fortaleza é um paraíso é dizer o obvio. A bela paisagem abrigava uma população variada. Parte dela composta por turistas e, infelizmente, uma pequena, mas significativa parcela indiferentes às belezas naturais. Em janeiro de 1998 a capital do Ceará era uma das mecas mundiais do sexo pago para muitos que vinham de todas as partes do mundo, o que ocorria sob o olhar leniente das autoridades e de parte da população local. Se alguns tiravam seu quinhão, cabia a essas jovens vítimas apenas a incumbência de doar seus corpos e almas a essa sanha bestial. Paquito e seu comparsa prosperavam nessa sordidez inconscientes de que já estavam na mira de alguém que chegava para furiosa e friamente coletar o preço do abuso perpetrado por tanto tempo em tantos inocentes...