Na virada do Milênio o Senador Luiz Estevão perde o
mandato por envolvimento no caso do desvio de verbas do TRT-SP e passa uma
noite na cadeia; O Banespa, instrumento de tantas falcatruas, é privatizado; O
Projeto Genoma conclui o mapeamento do DNA humano; O seqüestro do ônibus 174
termina em tragédia; Jader Barbalho e ACM se acusam de corruptos; O Juiz Lalau
é preso por desvio de verbas na obra do Fórum Trabalhista de São Paulo; A
música Anna Julia dos Los Hermanos cansa de tanto que toca; A Igreja Católica
contesta que as filmagens divulgadas sejam de um Padre pedófilo.
O sujeito de
nariz aquilino e feições severas ergueu os braços e disse com autoridade:
- Não meus filhos! Nosso senhor Jesus Cristo disse: crescei-vos e
multiplicai-vos. Então não pode sequer haver dúvidas na mente de um cristão
temente a Deus. Usar preservativos significa sexo sem fins de procriação.
Significa apenas luxuria! Não dêem ouvidos aqueles que querem apenas a sua
perdição. Resistam! Não temam meus filhos. A AIDS é, na verdade, uma punição do
demônio para aqueles que se voltaram contra Deus. Para aqueles que deixaram o
pecado entrar em suas vidas. Sejam retos no caminho cristão e nada lhes
sucederá.
As palavras do Padre Melchior ecoaram pela singela e abarrotada capela do
bairro de Inhagoia, na cidade de Maputo, Moçambique. Por mais de cinco anos o Padre
Melchior cuidou de seu rebanho com determinação e rigidez, mas agora tinha que
ir embora. Com dor no coração proferiu seu último sermão para seu rebanho, quase
que em sua totalidade composto por crédulos e desesperados, que confiavam
piamente no Padre Melchior, em sua divina ira e garantia de que com ele seriam
agraciados de alguma forma em algum momento de suas miseráveis vidas já que,
por serem justamente miseráveis é que Deus os tinha em alta conta. Uma
contradição que não lhes era dar terem ciência. Melchior tinha como certeza
divina de que seria melhor que seus corpos ruíssem a permitir que suas almas se
perdessem por toda a eternidade. Alguns poucos, os poderosos da vila e da
capital no entanto, ousavam discordar de sua opinião.
Fariseus. Todos eles! Lamentou
o Padre, ressentido pelo exílio que lhe impunham do seu rebanho, em especial,
de seus anjinhos, como se referia aos garotos da congregação.
Na ultima semana o Padre Melchior fora severamente admoestado pelo Bispo.
A imprensa local acusava-o de contribuir para o aumento da AIDS.
Ridículo, pensou ele, como se eu fosse responsável pela luxuria
daqueles que se infectaram. Eles que se entendessem com o Senhor, como ele próprio
estava se entendendo...
Mas como? Se ao longo de todos esses anos ele próprio esteve livre desse
castigo é tão somente porque, aos olhos do Senhor, ele não era culpado, afinal.
Mas agora, para piorar, não Deus, mas os homens, ou melhor, essa imprensa
demoníaca, o estava acusando de pederasta e, para piorar, sua própria igreja o
queria fora dali o mais rápido possível. Resignado com sua conduta e seguro de
sua salvação.
Hipócritas. Voltam a fazer o mesmo
que já fizeram comigo anos atrás. Refletia o Padre Melchior, genuinamente
convicto de sua condição de vitima. Não
vai dar em nada! Nunca deu. Afinal só tenho que prestar contas a Deus e não aos
homens. Até agora meu corpo se mantém puro em meio a essa imundície que esta aí
para punir aqueles que merecem. Não eu! Não fui punido em todos esses anos.
Prova de que Deus tem me perdoado. Prova de que faço mais bem do que mal...
Não há de ser nada. Recomeço em outro
lugar. Nada vai mudar.
O sujeito
flamboyant que se equilibrava com visível esforço no tamborete do balcão ao
mesmo tempo em que segurava um elaborado coquetel quase tão espalhafatoso
quanto a estampa de sua camiseta regata não chegava a destoar de muitos dos frequentadores
da boate My Boy em Palmas, Tocantins.
- Olá. Posso lhe pagar uma bebida? - Ofereceu a um sujeito calado que
sorvia lentamente uma vodka ao seu lado.
- Já estou bebendo – Retrucou o estranho, secamente.
- Já percebi... Percebi que você não tirava os olhos de mim, também.
- Ahã...
- É só pra chamar sua atenção, seu bobo. Vem sempre aqui?
- Não. É a primeira vez. – Mas diante da postura ansiosa do outro,
comandou - Se acalma. Você está muito agitada.
- Puxa, mas como você é mandão. Adoro isso. Eu me chamo Rodolfo, mas pode
me chamar de Rô. E você?
- Pode me chamar de Zé.
- Zé? Sei... Puxa, tá quente aqui, Zé. – Rô se abanou de forma afetada. –
De onde você é?
- Por aí...
- Sei.
- Sabe o que? Desembucha.
- Calma. Só que você age como se estivesse dentro do armário. Liberte-se
querido. Aqui é o lugar certo para isso.
- Isso não é da sua conta, bicha atrevida!
- Nossa. Como você é grosso. Se não quer minha companhia tudo bem. É só
falar. Não precisa magoar. – Reclamou Rô ameaçando se afastar e provocando uma
postura mais conciliadora por parte do estranho que, pela primeira vez, esboçou
uma ameaça de sorriso.
- Desculpe. É que não estou acostumado. Talvez você tenha razão.
- Tá. Eu te perdoo. Também já passei por isso e sei que não é fácil. Mas
a gente tem que se aceitar senão quem é que vai nos aceitar, não é mesmo?
- Já entendi o recado. – Respondeu Zé, secamente.
- Que tal se nós saíssemos um pouco pra nos conhecermos melhor? - Sugeriu
Rô, insinuante.
- Daqui a pouco. Por enquanto seja uma boa menina e vá me buscar mais uma
dessas.
- Que mandão. Adorei. Volto já e não sai daí.
Quando retornava o estranho bateu uma foto ao que Rô reclamou
enfaticamente.
- Fica fria. Entenda isso como um elogio – Zé deu de ombros de forma
condescendente,
Apaziguado Rô tentou selar a paz com um beijo.
- Calma menina. Me deixa terminar essa bebida que a gente resolve lá fora.
- Enrustido! Vamos resolver esse seu problema rapidinho -
Retrucou Rô todo faceiro.
A saída deles não causou comoção alguma
no ambiente que continuou tão animado quanto antes. Após alguns quilômetros
estacionaram bem afastado da estrada nas imediações de uma curva de rio. Assim
que desceram do carro, sem poder se conter, Rô tentou se aconchegar em um
ardente abraço ao que foi afastado sem
rodeios. Mais que a brusquidão do gesto o que dissipou a nuvem etílica do
alegre acompanhante foi a frase pausada emitida pelo estranho.
- Por favor, Padre Melchior, se contenha. Pelo amor de Deus.
O sorriso se apagou da face de Rô, repentinamente substituído por um
misto de espanto e medo.
- Quem é você? – Retrucou Melchior com uma voz que agora já não tinha
nada do falsete da anterior.
- Digamos que eu seja a ira divina. – Disse Max com um sorriso frio agora
portando uma filmadora nas mãos.
- Você esta devendo penitência Padre..., ou pensou que não seria preciso?
- O que quer comigo?
- Nesse momento, que você dê um completo depoimento de sua trajetória
para as câmeras. Afinal, precisamos registrar para a posteridade sua vida edificante.
– Disse Max enquanto montava a filmadora em um tripé.
- Você ficou maluco? Nunca eu vou fazer isso. Nunca!
Em vez de replicar, Max retirou uma pequena frasqueira da mochila e dela
uma ampola contendo um líquido vermelho com o qual encheu uma seringa sob o
olhar intrigado e cada vez mais assustado de um senhor, curiosamente trajado
com uma indumentária que agora já não combinava com seu recém adquirido porte e
postura.
- Pelo amor de Deus, o que é isso? O que é que você está querendo fazer? -
Suplicou o Padre Melchior – O que é isso? Afasta isso pra lá. Não me faça mal.
- Cale a boca e preste atenção. Esta seringa está cheia de sangue
contaminado com o vírus da AIDS, ou SIDA como chamam lá na sua última paróquia.
Estarrecido o Padre nada falou. Provavelmente não acreditando que aquilo
estivesse ocorrendo ou então, que talvez tivesse bebido demais ou que tudo não
passasse de um pesadelo do qual estava prestes a despertar.
- Vou enterrar essa seringa em seu corpinho asqueroso – Exigiu o estranho
gesticulando com a seringa.
- Por favor, não. Não faça isso. Pelo amor de Deus. Faço o que você
quiser, mas não me infecte. Pelo amor de Deus.
- Se recomponha homem! Estou interessado no Padre Melchior e não na Rô. –
Gracejou Max ostentando a seringa como se ela fosse um punhal.
- Pelo amor do Nosso Senhor Jesus Cristo afaste isso de mim, seu demônio
maldito. Não faça isso.
- Mas como não? Afinal você não demonstrou nenhum amor cristão ao
permitir que seus fieis, homens, mulheres e crianças, se infectassem em nome de
seu moralismo falso, não e mesmo? – respondeu Max sarcasticamente – Vamos fazer
o seguinte. Se você contar em detalhes a sua estória eu te poupo. O que você
acha?
- Ah, isso não. Eles são mártires, anjinhos que já estão no céu. –
Balbuciou o Padre Melchior de forma desconexa. - Eu estava salvando a alma de
meus fieis que é mais importante do que suas vidas, do que seus corpos aqui
na...
- Já que é assim eu vou, então, destruir seu corpo também. – Interrompeu
Max. - Quem sabe assim eu te resgato como mártir da luxúria e você ganha o
reino dos céus... O que você acha disso?
- Não, por favor.
- O pior é que no seu caso isso não vai te dirimir. Tenho certeza de que sua
alma vai direto pro inferno, sem escala no purgatório. – Escarneceu Max. Para
reafirmar sua intenção Max avançou com a seringa em riste.
- Não, não. Espera, por favor... Eu faço, eu faço, mas me diz o que você
vai fazer com essa gravação?
- Isso você não vai saber. Você vai viver o seu resto da sua vida. Vou
julgar se será pelo tempo que a AIDS permitir...
- Mas eu não quero isso. Não quero essa praga no meu corpo. Não
- Com medo. Será que eu vou revelar? – disse Max, bem lentamente, quase
que num sussurro – Se vou fazer isso? Como eu vou fazer? Não importa. Você
aniquilou a tantos. Vomita aqui pra câmera que você os impediu de usar
camisinha, de se precaverem e que, por isso, eles se contaminaram. Que você os
matou lenta e dolorosamente, mas que antes você manchou a inocência de seus
filhos... Mas começa do inicio. Quando você ainda era apenas um seminarista. Lembra-se
do orfanato? Tão humanitário... Vamos lá, fala!
O silêncio imperou e o medo do Padre foi momentaneamente substituído pela
surpresa. Mas foi tirado do estupor pela dura realidade do dia do seu juízo
final.
- Não tenho o dia todo. Vamos Padre. Dê seu depoimento para as câmeras,
mas sem pregação. – Max ordenou lenta e friamente enquanto mantinha a seringa
bem a vista.
Por cerca de uma hora o Padre Melchior desfiou sua hipócrita, seu
fanatismo, sua pederastia. Assassino que foi ainda sem admiti-lo, contou em
detalhes sua vida. A princípio titubeante e gradualmente de forma mais
convicta. Sempre que o Padre resvalava para a pregação Max, fora do alcance da
câmera, pressionava a agulha contra eu corpo. Acovardado, o Padre Melchior
retornava a sua hedionda narrativa. Quando encerrou sua fala, Max se deu por
satisfeito. Sem nada comentar, desligou a câmera sob o olhar apagado do Padre e
ergueu a seringa em sua direção.
- Não! Você prometeu... - Suplicou o Padre.
- Eu menti – retrucou Max friamente.
Max avançou e o agarrou pelo pescoço cravando-lhe a agulha no pescoço. O Padre
se debateu inutilmente enquanto o conteúdo da seringa desaparecia lentamente em
suas entranhas.
- Fique tranquilo Padre. Você provavelmente terá um tratamento melhor do
que os muitos que desgraçou. Talvez até viva bastante. Espero que não!
Max recolheu seu equipamento e se afastou em direção ao carro, deixando o
Padre conjecturando se enfim tinha recebido sua punição. Se ela era merecida. Um
castigo maior do que a divina. Aquela da qual já se acreditava perdoado.
Alguns dias mais
tarde Max enviou as gravações junto com uma elegia para vários jornais e
revistas semanais, além da própria internet e sem nenhuma informação adicional
que indicasse quem era a vítima.
“A fé é exigida para o abuso se consumar.
Na crença de se acreditar sempre correto.
Combustível da hipocrisia!
Os pobres de espírito, as ingênuas ovelhas...
Seu pastor é seu predador!
Mas eles não escutam.
E assim, seu pecado justifica a praga?
Seu pastor é seu predador.
Os pobre inocentes, um após o outro.
Pois eles retornam,
Como anjos vingadores.
O interlocutor divino pagou a penitência,
Pela mão esquerda de Deus.
O sofrimento é a redenção.
Como ele mesmo insistia:
Salve a alma e morra o corpo!
Por não serem
sensacionalistas ou por não estarem interessados em se indispor com a Igreja a
maioria dos meios de comunicação inicialmente não divulgou a gravação ou o
poema. Mais tarde cópias começaram a aparecer na internet e foram associados ao
caso dos pedófilos de meses antes. Ao que tudo indicava o Poeta estava de volta.
A celeuma que se seguiu permitiu que uma das revistas semanais de maior
circulação no país recebesse uma carta de um de seus leitores afirmando que
conhecia a pessoa da fotografia. A reportagem investigativa que se seguiu
revelou que o Padre Melchior Macedo da paróquia de Paranã em Tocantins tinha
sido alvo do Poeta. Mais curioso ainda, o Padre havia falecido a apenas poucos
dias de enfisema pulmonar como confirmava o atestado de óbito do hospital
regional e a polícia civil local. Naturalmente a Igreja inicialmente evitou
qualquer comentário para mais tarde negar veementemente que o Padre fosse
realmente um pedófilo e que tudo não passava de um psicopata que havia
escolhido e torturado um pobre homem de Deus.
- Com tantos contras chega a ser irônico apreciar sutilezas como uma boa
música – Comentou Max – Pelo menos para gente como nós.
Para os apreciadores de Jazz, Blues e Bossa Nova o Allegro Bistro era o endereço certo no Rio. Em uma mesa distante do palco Max
apreciava o show na companhia de um aficionado como qualquer outro.
- Vai fazer cinquenta anos que Miles Davis compôs e arranjou Kind of Blue, a música mais emblemática
do jazz. Não há argumento contrário – Discursou professoralmente seu parceiro de mesa. - De
qualquer forma hoje é noite para celebrar. Dois desses “contras” foram
eliminados.
O sujeito a que Max se referia como
Capitão insistiu em continuar na mesma linha de raciocínio, alheio à música que
se desenvolvia no pequeno palco.
- Claro que merecemos uma pequena
celebração, mas ainda há muitas pendências e sem querer estragar o clima ainda
há a Dona Matilda e o filho. Precisamos discutir isso Tenente.
- Claro que precisamos. – Retrucou
Max, virando as costas ao show e encarando seu companheiro de mesa. - O que
você tem em mente?
- Você está vendo aquele sujeito ali na 1ª fila? Aquele alto, careca, que
estava discutindo com o garçom quando entramos? – Disse o Capitão entregando-lhe
um envelope de papel pardo. – Pois bem. Ele é o seu próximo caso, mas não
agora. Espere alguns meses. Eu lhe aviso quando. Por ora vamos estudar seus
hábitos.
- É... para gente como nós não há oportunidade para escapar ao nosso
oficio. – Retrucou Max já não mais atento à performance que se desenvolvia no
palco.